sábado, 23 de abril de 2011

Joyceanas III: "Tristão"

Quando sentei-me à toca,
a lebre me oferecia
cenouras ou soníferos.

O sorriso de minha mãe
se escondia nas alturas,
subrepticiamente.

Abriam-se os sobrolhos,
e ouvia dos joelhos
Mitos insônes malvos
Helênicos estalos de frio
Rapinando as horas.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Joyceanas II: "Poeira ao vento"



A lontra, agora, emerge do lago,
trovadora de nossos sonhos,
e sorve a madrugada virgem.
Pés pantanosos, varamos nús,
Navegadores ancorados.
Poeira ao vento que me diz:
“Estou no fundo do infinito”
E o sol nasce escuro.

Manhã embriagada de febre. Manhã
de lua nova que quer viver. Manhã,
de todos os deuses, sigilosa. Manhã,
filha harmoniosa, em teus braços nasceste...

... No fundo do infinito, ante o pávido,
Colosso segredo da madrugada.
Esta hora, ouvir o primeiro entoar
de saracura, santo menestrel que
nos desperta, vigilante. E a Lua,
dardejante amante da Terra bruta,
onde a cobra se faz passante,
onde o Sol erige um túmulo.

Alvorada, triste alvorada de breu;
Alvorada, Mãe artimanhosa de sóbrio céu
em tua ventríloqua esperança perdemos
os dias morgados nos quais rogamos,
boquiabertos, externando nossos cantos:

“Somos poeira ao vento,
no fundo do infinito,
vigiando um firmamento,
tão calmo e tão aflito.”

domingo, 12 de dezembro de 2010

Joyceanas I: "Concerto di Giovanni"


A sonolência dos olhos afina
as tarrachas do banjo e, catatônico,
reconhece neste gesto mudo do mundo:
o que é verdade assombra.

Lume, dura-lume, paira tátil
no instante epifânico da morte.
Morte, seca-morte, ritornelo
Q´oramos pra que haja, nesta praia...

Passos, razos passos, poucos santos
no véu que rompemos no traço.
Conosco quebram ondas sozinhas,
nos passos, estamos sozinhos.

Sozinho, coração selvagem da vida,
Cão-de-raça em sobressaltos cintilantes
congela nas dunas cor-de-aveia,
convida a manta negra das estrelas,
espectro natibundo, o furor
dos fogos de artifício, dardejantes.

Explodem fogos messiânicos, quando
tudo é estático, perene no céu.
Malva-de-estrela-morta, retumtibitiante
faces pálidas, uvas alvas, violinos...

Natureza-morta, coração sevalgem da vida:
o que é verdade é sozinho.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Às pipas do Complexo do Alemão


Deve de existir algo além
do vidro moído nos dedos infantis,
nos gracejos indômitos dos papagaios
em um céu tão escarlate, sibilante
registrado no livro dos dias.

Quantos sonhos não deixamos
para trás...?

Entulhados na fábrica
de Pandoras, para vingarmos
a insulta injuriosa dos famintos,
a tarde entediada dos meninos,
que são todos como nós.

Nós, cavaleiros do céu,
empunhamos o carretel, e ajoelhados
oramos, bendito o fruto do vosso ventre
nesta cruzada pela supremacia
do azul que resplandesce, infinito.

Deve de existir algo além
do dourado flamejante das pipas,
do reino das barricadas, da ascenção
ao monte Olimpo, onde Zeus, o onipotente,
derrama lágrimas de cristal ao invés de relâmpagos
pelo filho herculoso, enterrado
na curva atlântica do Cruzeiro.

... mas te vi, e quis ser fraco.
Quis ser de papel. Troquei meu carretel,
pruma rede torta do pantanal, onde sonho
ao odor dos camalotes, sentir
o mãe-da-noite me invocar,
e o trem que cruza o Brasil
longínquo, passar.

Longínquo, passar.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Fortaleza dos Céus


Vejo longe, aproximar-se, a tempestade
De constelações implodindo, novamente,
Chovendo em minha direção.

As paredes marmóreas, sibilantes
Tão frágeis de distúrbios conterrâneos
Q´esta fortaleza invisível viveu...

Escondido, do redoma, vejo o celeuma,
fogos de artíficios que terei de suportar,
solitário, novamente, neste forte.

Os olhos lívidos sorriem
de ternura ou desespero
calma ou vigilância.

No fundo, tudo há de perecer contigo.

domingo, 12 de setembro de 2010

Da lagoa de Araruama


O anzol estendido, silenciado
por um breve alento, tranquilo.

Veja a eterna imobilidade da superfície!
E os dedos mirins que boiam,
sem latência, de contida ternura.

O eco longínquo das saracuras se faz
outro ameno passatempo, tão pávido
e solene, na lisa constância da marola.

Veja os camarões migrando de barrete!
Num átimo único desta estação...
E, ainda, os peixes nos quais acreditavamos
Viajam em cardume por outra região.

Um cardume dançando, por outra região
E, ainda, o anzol estendido, nunca a tremular.
Sofre da mais sincera sapiência,
no infinito e turvado coração.

Não há nada que se possa fazer.

sábado, 11 de setembro de 2010

"mas, se éramos homens o bastante, admitiríamos que havia também dentro de nós, por mais débil que fosse, uma certa receptividade à terrível franqueza daquele alvoroço, uma vaga suspeita de que havia ali um significado, que nós - tão distantes da noite das primeiras eras - podíamos compreender. E por que não? A mente humana é capaz de qualquer coisa - porque tudo está nela, todo passado, bem como todo futuro. O que havia ali, afinal? Alegria, medo, tristeza, devoção, valor, ódio - quem poderia dizer? Mas a verdade... a verdade despia-se de seu manto temporal. Deixem o tolo embasbacar-se e estremecer - o homem verdadeiro saberá compreender e contemplará tudo sem pestanejar. Mas deve ser no mínimo tão homem quanto aqueles na margem do rio. Deve encontrar aquela verdade com sua própria verdade - com sua força inata. Princípios não vão adiantar. Bens, roupas, panos bonitos... que voariam na primeira sacudidela. Não. O que se precisa é de uma crença deliberada. Exerceria aquele demoníaco tumulto alguma atração sobre mim? Quem sabe? Muito bem, estou escutando, posso até admitir, mas tenho uma voz também que, bem ou mal, não pode ser silenciada. Naturalmente, um tolo, com seu pavor habitual e seus nobres sentimentos, estará sempre a salvo. Quem está resmungando? Vocês podem até imaginar, por que não fui à terra uivar e dançar? Bem, na verdade, não fui. Nobres sentimentos uma ova! Eu não tinha tempo."

- Coração das Trevas, Joseph Conrad